Classe seca bem longe da festa do consumo

segunda-feira, novembro 19, 2012 Inaildo Dionisio 0 Comentários


Na zona rural de Serra Talhada, Maria Ivanize, 76, e Domingues Nogueira, 75, também deixaram a casa localizada ali perto, na Serra Vermelha, para ir morar em outro lar, à beira da pista. Os dois têm mais sorte que a família de Sertânia: a casa nova, grande e iluminada, pertence a um dos filhos, que vive em São Paulo. Duas cisternas abastecidas pelo Exército seguram a vida dentro de certa normalidade: é possível bebê-la, cozinhar o feijão, lavar roupa. Cada um recebe um salário mínimo de aposentadoria, o que garante R$ 1.244 ao mês.

Mas a estiagem unifica, à sua maneira, aqueles que o mercado costuma apartar em classes A, B, C, D, E: o casal vendeu as 18 cabeças de gado e ficou com 80 ovelhas, menos dispendiosas. Ainda assim, gasta R$ 836 por mês para mantê-las alimentadas. O dinheiro da aposentadoria não dá conta das despesas: “É um salário para comer e comprar remédio, o outro para alimentar os bichos”, diz Domingues. São tempos bem diferentes: há cinco anos, ele chegou a ter mais de 300 bodes. Dez anos antes, em 1996, plantava algodão, que ele chama de “ouro branco”. A bonança, como acontece com todos, o animou a investir: comprou uma casa no Centro de Serra Talhada. Depois, vendeu duas vacas e 120 ovelhas, apurou R$ 8.500 e comprou outra. De cinco anos para cá, diz que tudo o que conseguiu “adquirir” foram algumas doenças. “Antes, nossa conta era de multiplicar. Depois, passamos para a de somar. Agora, é só conta de diminuir.” Maria também é sintética: “As quatro letras da seca estão acabando com tudo”.

Na sala, dois bens destacam-se: o quadro animado de Jesus Cristo, cujos olhos abrem-se ou fecham-se dependendo de onde o observador se coloca (“trouxeram de Juazeiro, foi uns R$ 30”, diz Maria), e uma TV CCE branca, LCD, de 32 polegadas. Foi comprada no Centro de Serra Talhada, onde as lojas começaram a ver a procura por bens como geladeiras, motos e celulares, símbolos de inclusão um tanto manca, caírem (leia matéria na próxima terça-feira). Domingues está pagando o produto em seis parcelas de R$ 133. Como não gosta de dever (“não durmo direito se isso acontece”), vai sacrificar parte do dinheiro voltado à ração das cabras, para pagar em dia. Afinal, a TV é a companhia de Maria durante as manhãs, quando ela fica sozinha na casa enquanto Domingues cuida das cabras

CINQUENTINHA - Com um padrão de vida similar (boa casa, possui cisterna, vive em fazenda), Gilzete Nogueira, 72 anos, cunhada de Domingues, viu pela primeira vez na vida, apesar de ter passado por secas anteriores, alguns de seus animais morrerem de sede e fome. Três deles foram embora, restaram 19 bichos, entre vacas e garrotes. Estão muito magros. “A gente só dá um engano a eles. Se for alimentar direito, gasta uns R$ 2 mil por mês. Assim, gasto uns R$ 600.” Também vive com dois salários mínimos (sua aposentadoria e a do marido, falecido). Não falta água para a família: a cisterna que abastece tanto a casa de Gilzete quanto a do filho que mora ao lado guarda um pouco da boa água da chuva. É o máximo de luxo que as sete pessoas da família possuem hoje: água limpa. Sem condições de trabalhar na roça – não colheram nada do ano passado, não plantaram nada este ano – tiveram que ir até o comércio de Serra Talhada e se endividar.

Um dos filhos, Cláudio comprou um compressor por quase R$ 2 mil para consertar as rodas dos carros que passam na estrada à frente da fazenda (na entrada, encostado em um mandacaru, um pneu velho serve de base para o anúncio “borracharia”). Esperam, com a oficina improvisada no terraço, manter os animais, comprar comida, pagar as contas – inclusive a conta do compressor.

Contam com o dinheiro incerto de outro filho, Antônio, que ganhou da mãe uma motocicleta de segunda mão há quase dois anos, quando a chuva começou a rarear. Com a “cinquentinha” (como é chamada a motocicleta popular que é um dos ícones da inclusão brasileira que se dá pelo consumo, e não pela garantia de direitos básicos como saúde e educação), ele trabalha como mototaxista. Transporta basicamente os assentados que moram perto da barragem de Serrinha, onde ainda resta água. Cobra de R$ 5 a R$ 10 por corrida.

Para conseguir passageiros, passa parte do dia sob uma espécie de parada e ponto de encontro construído à beira da rodovia, o mesmo local onde seu pai morreu após um ataque cardíaco há quase sete anos. Está enterrado na fazenda, no mesmo túmulo de dois irmãos de Antônio, que foram embora sem saber que a família passaria, naquele novo Brasil, naquele Estado que se orgulhava de seus estaleiros e refinarias, por uma seca similar à de mais de 40 anos atrás. (JC On Line)


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